domingo, 20 de fevereiro de 2011

País não tem dados oficiais sobre número de desaparecidos; fonte relata que problemas técnicos impedem que o sistema funcione

Lectícia Maggi, iG São Paulo
10/02/2011 07:00

O governo lançou, em 26 de fevereiro de 2010, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas (CNDP), uma parceria do Ministério da Justiça (MJ) com a Secretaria Direitos Humanos (SDH). Com o lançamento, ressurgiu a esperança para quem procura um ente desaparecido. Contudo, quase um ano depois, o iG verificou que o cadastro não existe.
“É fictício”, critica Ivanise Esperidião, que desde dezembro de 1995 busca a filha Fabiana, desaparecida aos 13 anos, a 200 metros da casa. Ela é presidente da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD), conhecida nacionalmente como Mães da Sé – alusão porque a cada 15 dias elas vão à Praça da Sé, no centro de São Paulo, divulgar fotos dos filhos desaparecidos - e faz parte do comitê que auxiliou a concepção do cadastro.
A cada 15 dias, familiares se reúnem na escadaria da Igreja da Sé, no centro de SP, para divulgar fotos de parentes desaparecidos.
À época, chegou a comemorar o lançamento. Hoje, conta que se sente abandonada pelo poder público. "Estou me sentindo frustrada, trabalhamos 2009 inteiro no comitê da RedeSap (Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos) para a criação do cadastro, ele foi lançado, mas não está operando. A sensação que tenho é de total descaso comigo e com as milhares de mães espalhadas que procuram por seus filhos desaparecidos", desabafa.
O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas é tão reivindicado porque reuniria informações sobre pessoas de qualquer idade desaparecidas pelo País. Cada Boletim de Ocorrência dando queixa de um desaparecido seria lançado imediatamente no cadastro, possibilitando a todas as polícias do País ter acesso ao conteúdo e, assim, se auxiliarem. “Seriam 27 Estados trabalhando de forma conjunta e a chance de achar seria muito maior”, considera.
Ivanise fica duplamente triste: por si e pelas 9.322 pessoas cadastradas na Mães da Sé (até quarta-feira, 9). Mais do que isso, conta que se sente envergonhada. “Eu crio expectativa para as minhas mães. Vou para Brasília e volto dizendo: ‘Graças a Deus teremos o cadastro’. Aí, depois, elas me cobram: ‘E aí, Ivanise, e o cadastro? Cadê Ivanise?’, e eu acabo passando por mentirosa”, lamenta. Na última reunião que participou com o Ministério da Justiça em 2010, no dia 3 dezembro, teve a promessa de que ele começaria a funcionar no dia 15 do mesmo mês, o que, novamente, não aconteceu. “Para quê foi criado se não funciona?”, questiona.

Atual situação
O cadastro deveria estar no site http://www.desaparecidos.mj.gov.br/, que somente disponibiliza a rede nacional de identificação e localização de crianças e adolescentes desaparecidos. Criada em 2002, a sua atualização está defasada há tempos. No Estado de São Paulo, por exemplo, em 2010, não há o registro de nenhuma criança desaparecida. Em 2009, há apenas duas: Aline Silva Costa, incluída em 7 de janeiro, e Adonis Fontes da Silva, em 10 de março, sendo que nenhuma delas tem foto.
Em outros Estados do País a situação é pior. No Amazonas há somente três desaparecidos, com a última atualização feita há mais de cinco anos, em novembro de 2005. Santa Catarina também tem três casos, sendo o mais recente o de Franciele da Silva, colocado no site em 26 de abril de 2007.
A rede mostra que Alagoas tem apenas uma pessoa desaparecida: Anderson Conceição Leite, sumido em janeiro de 1993 e que foi incluído no site em novembro de 2002. No Acre não constam desaparecidos.

Impasse e justificativas
Procurada pela reportagem, a assessoria do Ministério da Justiça disse, primeiramente, que o cadastro era atribuição da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. A Secretaria pediu à reportagem que procurasse o Ministério da Justiça. Diante da insistência, o MJ informou “que nem todos os Estados encaminharam as taxas de desaparecidos e, por isso, o Cadastro não foi lançado e está sendo remodelado”. A assessoria informou que ninguém poderia dar entrevista sobre o assunto.
Fonte da SDH ouvida pela reportagem - que não quis ter o nome divulgado - conta que, após o lançamento do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, foram identificadas diversas falhas no sistema. “Tinha dificuldade de operacionalização, falhas nos módulos de pesquisa, de cadastro de fotos e de busca. Diante de tantos problemas fizemos reuniões e geramos relatórios das falhas para que sejam corrigidas”, afirma a fonte, que diz não saber quando o cadastro irá de fato ao ar. “Dizem que é em breve”.

Busca solitária
Enquanto isso, as mães vivem na angústia de não saber se o filho está vivo ou morto. Sozinhas, e muitas das vezes com poucos recursos, checam todas as informações que recebem e buscam em outros Estados os filhos desaparecidos.
Com a exceção de Ivanise, a criadora da associação, a mãe que a mais tempo faz parte da Mães da Sé é Irene de Souza Santos, de 66 anos. Há 16 anos ela não tem notícias do filho Valdinei Ferreira dos Santos, que tinha 28 anos quando saiu na manhã de uma sexta-feira para visitar a avó que estava hospitalizada e, como na maioria dos casos, nunca mais foi visto.
Desde então, ela não teve nenhuma pista de “Nei”, como o chamava. “A primeira coisa que fiz foi ligar para todos os amigos, professores, não deixei um de fora. Colei muitíssimos cartazes pela cidade. Fui a programas de TV divulgar fotos e contar a história”, diz. De pronto, lembra de ter estado com Silvio Santos, Serginho Groisman, Silvia Popovic e Datena. “Tudo o que você imaginar eu já fiz”.
Situação semelhante vive há 10 anos Neusa Annanias de Moura, de 69 anos, que procura pelo filho Leandro, então com 17 anos quando sumiu, no dia 8 de setembro de 2000, após sair para ir a uma festa a 10 minutos da casa onde morava, em São Miguel Paulista, zona leste da capital. A mãe nega saber de qualquer tipo de ameaça ao filho, que ele estivesse envolvido com drogas ou ainda pudesse fugir de casa. “É meu caçula, menino bom, queria trabalhar.“
Ainda hoje, ela perambula constantemente pela cidade em buscas de pistas. “Ando embaixo de viaduto, na cracolândia... Já fui a Minas (Gerais). Onde falam, eu vou, mostro foto dele. Passo dois, três dias indo direto”, diz ela. Sobre o lançamento do cadastro há um ano, mas sem que estivesse pronto de fato, diz ter tido mais uma vez a esperança reduzida. "Ficamos contentes, ‘filnalmente algo bom vai acontecer’, mas ficou nisso", lamenta.

Falta de dados
Sem um cadastro consolidado, o Brasil não tem dados precisos sobre o número de pessoas desaparecidas. O próprio site do Ministério da Justiça admite a falta de informação sobre o assunto. "Não existem dados oficiais que determinem a quantidade de crianças e adolescentes desaparecidos anualmente, contudo, dos casos registrados, um percentual de 10 a 15% permanecem sem solução por um longo período de tempo, e, às vezes, jamais são resolvidos (...)", diz o texto do site do MJ, onde deveria estar hoje o Cadastro Nacional.
Às mães pouco resta além de esperar. "É lamentável, nossos filhos fazem parte de uma triste estatística que não sabemos nem ao certo qual é", constata Ivanise.

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